ATAQUES DOS INVASORES LEVARAM PADRES E NATIVOS PARA PRÓXIMO AOS RIOS URUGUAI E PARANÁ, FORMANDO AS 30 MSSÕES, SETE NO NOROESTE GAÚCHO

> No fim da rodovia RS-536, Noroeste do Rio Grande do Sul, descansa uma cidade. O perfil simples das casas e dos moradores não revela e tampouco alardeiam as placas e indicações de turismo, negócio relegado por aquelas bandas. Mais fácil apreender a história pelo ar.

Pôr um pé nesse lugar já indica que o solo é sagrado. O sol reflete nas ruas de pedras grossas e nos rostos dos esparsos locais em suas varandas, sorvendo o amargo, o mate, e parece contar um segredo aos forasteiros. “Ei, psiu, aqui em São Miguel das Missões o ser humano já deu certo, sabia?”.

Universidade Metodista

Por mais que se ensine nas escolas e em um filme de Hollywood – “As Missões”, com atuações de Robert De Niro, Jeremy Irons e Liam Neeson e trilha sonora de Ennio Morricone, vencedor do Oscar de Melhor Fotografia em 1987 – trate do assunto -, não se reverbera tanto essa experiência.

Fundada em 1534 pelo basco Inácio de Loyola, ao lado de seis camaradas espanhóis, portugueses e franceses, em Paris, a Companhia de Jesus foi autorizada a propagar a mensagem da igreja católica na América do Sul a partir de 1566, em tempos de ascensão do protestantismo.

Famosos pela obstinação e pela disciplina, os jesuítas logo se tornaram uma importante ordem dentro do catolicismo. Mas por aqui as coisas demoraram a engrenar. A exemplo de outros destinos ermos onde decidiram catequizar – até no Japão eles chegaram -, em nosso continente muitos mártires foram feitos até que se criasse com habitantes nativos a relação que chamou a atenção do cinema e de grandes pensadores mundiais.

Alguns desses mártires viraram santos, a exemplo do paraguaio Roque Gonzáles de Santa Cruz. Qualquer semelhança com o nome do famoso atacante da seleção paraguaia de futebol não é mera coincidência.

JESUÍTAS E GUARANIS

300 mil guaranis capturados das comunidades jesuíticas FOTO: DIVULGAÇÃO BLOGSPOT MUSEU DAS MISSÕES

300 mil guaranis foram capturados das comunidades jesuíticas
FOTO: DIVULGAÇÃO BLOGSPOT MUSEU DAS MISSÕES

Foi na região onde hoje se encontram Argentina, Brasil e Paraguai, então território do reino espanhol, que se desenvolveu com mais sucesso a troca de experiências entre religiosos europeus e índios. Entre as muitas tribos espalhadas pelo continente, ali os guaranis eram o povo dominante, desenvolvendo a agricultura com mais primor que seus conterrâneos, como retrata o historiador José Roberto de Oliveira no livro “Pedido de Perdão ao Triunfo da Humanidade”.

Segundo Bartolomeu Meliá em “O Guarani Conquistado e Reduzido”, cerca de um milhão e meio de guaranis viviam na América no momento da chegada dos colonizadores. Haveria, inclusive, contato constante entre eles e o maior império do território sul-americano, o Inca, localizado do outro lado da Cordilheira dos Andes, contato esse facilitado pelo Caminho do Peaberu, estrada que ligaria o Oceano Pacífico ao Atlântico.

Meliá também conta que os índios eram convencidos a se juntarem aos padres na fé cristã sendo presenteados com ferramentas de ferro, material desconhecido por eles. Nem todos confiavam na oferta e muitos religiosos acabavam sendo assassinados. A princípio, nenhuma discrepância com toda a história da colonização americana. O que se desenvolveu a partir desse primeiro contato, no entanto, entrou para os anais.

SETE POVOS DAS MISSÕES

Uma série de preceitos regrava as missões jesuíticas, além da instrução da doutrina cristã. Segundo as leis promulgadas pelos reis espanhóis, “conservar a raça indígena, afirmar a paz interior dos povos, resguardar a liberdade do guarani e aperfeiçoá-los no exercício da agricultura e da indústria” também deveria ser uma obrigação. O desenvolvimento dessas estruturas interessava à coroa espanhola como forma de povoamento do território e de fortalecimento das divisas com o reino de Portugal, estabelecidas pelo famoso Tratado de Tordesilhas.

A imposição da fé cristã em substituição às crenças politeístas e à idolatria à natureza sempre serão motivo de questionamentos, mas, de fato, o convívio com os missioneiros apresentava uma oportunidade interessante aos guaranis, perseguidos por bandeirantes escravistas do lado português do território e por caçadores em busca de material humano para as “encomiendas” – prática não muito distante da escravidão – do lado espanhol.

Inicialmente, nem mesmo as missões foram respeitadas pelos traficantes de índios. Em “Gloria y Tragedia de Las Misiones Guaranies”, de Silvio Palácios e Ena Zoffoli, calcula-se que até 300 mil guaranis tenham sido capturados das comunidades jesuíticas apenas pelos bandeirantes paulistas até que as vítimas passassem a se defender.

30 povos indígenas FOTO: DIVULGAÇÃO BLOGSPOT MUSEU DAS MISSÕES

Foram formadas 30 missões
FOTO: DIVULGAÇÃO BLOGSPOT MUSEU DAS MISSÕES

Oprimidos pelos ataques avassaladores dos invasores, padres e nativos se transportaram do que hoje é conhecido como o Oeste de São Paulo e o Noroeste Paraná ainda mais para o Sul, próximo aos rios Uruguai e Paraná, onde se formaram a partir do final do século XVII as 30 missões, sete delas dentro do atual território brasileiro, no Noroeste Gaúcho.

Os missioneiros armados e protegidos – construíram ao lado dos nativos o que se denominou muitos anos depois o “socialismo cristão”, experiência alcunhada pelo filósofo iluminista francês Voltaire como “triunfo da humanidade”. A religião ditava o convívio nessas cidades, nas quais forasteiros espanhóis eram proibidos de entrar. Alguns poucos sacerdotes administravam a população, distribuída em casas meticulosamente formadas em torno da igreja local, em acordo com os indígenas, estabelecendo os líderes locais em pequenas repúblicas independentes e decidindo os assuntos políticos, econômicos e penais, como descrito em “Pedido de Perdão ao Triunfo da Humanidade”. No cotiguaçu, viúvas e idosos recebiam cuidados especiais. A língua e costumes guaranis – como o consumo do mate, o chimarrão – eram preservados.

Homens e mulheres dividiam-se entre os cuidados com os rebanhos, manufatura e lavoura e a produção era compartilhada entre os locais, estocada, repassada às demais missões e, em última instância, trocada com negociantes externos. Aos guaranis também foram transmitidos ensinamentos artísticos e até hoje é possível testemunhar, em São Miguel das Missões, município das mais intactas ruínas dos arredores, patrimônio da humanidade pela Unesco e casa de museu projetado por Lúcio Costa, e também nas cidades vizinhas, as pinturas, as esculturas e a arquitetura barroca moldados pelos nativos sul-americanos. Música, dança e teatro eram atividades comuns nas missões e instrumentos musicais próprios eram construídos nos territórios jesuíticos.

TRATADO DE MORTE

A próspera comunhão entre os 30 povos, cuja população se aproximou de 150 mil habitantes por volta de 1730, virou exemplo para o mundo, mas foi ignorada pelos governos de Espanha e Portugal. A ascensão da Companhia de Jesus e a crescente influência da ordem incomodavam uma Europa. Transmitiam-se boatos sobre o enriquecimento dos sacerdotes e a acumulação de metais preciosos, na realidade, inexistentes na região.

Herança dos guaranis é muito viva no Paraguai, que tem o guaranico
150 mil habitantes FOTO: DIVULGAÇÃO BLOGSPOT MUSEU

São aproximadamente 150 mil habitantes
FOTO: DIVULGAÇÃO BLOGSPOT MUSEU

Em 1750, os espanhóis assinaram a partir do Tratado de Madri a entrega da região dos Sete Povos das Missões em troca da Colônia de Sacramento, entreposto pirata criado pelos portugueses dentro do território castelhano, em frente a Buenos Aires, na margem oposta da foz do Rio da Prata.

De repente, 30 mil guaranis se viram obrigados a atravessar o Rio Uruguai para o lado espanhol da fronteira, abandonando o legado estabelecido nas Sete Missões. Boa parte deles, claro, resistiu, liderada pelo líder guarani Sepé Tiaraju, dando início às Guerras Guaraníticas, confronto registrado no filme “As Missões”. Venceram os exércitos unidos de Espanha e Portugal após seis anos de derramamento de sangue e destruição.

O tratado foi revogado 11 anos depois, permitindo que os antigos habitantes da região a ela retornassem. Em 1768, contudo, os jesuítas foram expulsos da Espanha e de suas colônias, a exemplo do que já havia acontecido nove anos antes em Portugal e no Brasil. Emigrados pela Europa, eles teriam, como retratado em “Sepé Tiaraju, 250 Anos Depois”, levado à Alemanha e à Rússia – o socialismo cristão foi retratado na obra de Paul Lafargue, jornalista revolucionário genro de Karl Marx – a semente do pensamento comunista que brotaria nesta parte do globo.

A herança dos guaranis é vivíssima no Paraguai, que inclusive tem o guarani como língua oficial, e se disseminou pelo Brasil, se não nomes dos cidadãos, hoje já europeizados, com certeza nos traços físicos e nos costumes.

Lucas Borges