Com o programa Tolerância Zero, implantado há 20 anos, Nova Iorque oferece lições valiosas a prefeitos em busca de soluções para o combate à criminalidade, um dos problemas mais graves enfrentados pelos municípios.

O Brasil de 5.570 municípios é internacionalmente reconhecido por símbolos de descontração como o carnaval e o futebol, mas a violência urbana desponta como indesejada marca registrada nacional. Em 2014 foram cometidos nada menos que 58.559 assassinatos no País, número mais alto da série compilada há sete anos e que consta do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Isso significa a morte violenta e intencional de 160 pessoas por dia, patamar que torna o Brasil o campeão mundial em número absoluto de homicídios, segundo levantamento realizado pela Organização das Nações Unidas – ONU.

Nos Estados Unidos, com população de cerca de 320 milhões de habitantes – maior que a brasileira, de 205 milhões – são registradas, em média, 90 mortes por armas de fogo diariamente. Ou quase 33 mil por ano. O número é considerado um escândalo para os cidadãos de uma nação acostumada ao envolvimento em guerras, a ponto de o “gun control” (controle de armas) despontar como um dos principais temas de debate político durante as prévias presidenciais. A candidata Hillary Clinton, do Partido Democrata, é a que mais catalisa atenções do público ao defender restrições à venda e sistema mais rigoroso de checagem do histórico dos candidatos ao porte legalizado.

Universidade Metodista

Outra referência de que o Brasil atingiu números insustentáveis? Cerca de 90% dos 5.570 municípios têm menos de 50 mil habitantes, o que significa que a cada ano o Brasil perde o equivalente à população de uma cidade em função de violência doméstica, desavenças pessoais, latrocínios (roubos seguidos de morte), além de parcela formada por policiais mortos em combate. Sob esta perspectiva, a célebre definição de “povo cordial”, atribuída ao historiador Sérgio Buarque de Hollanda, assume conotação alternativa derivada do termo de origem latina. Povo cordial, à luz dos dados, é aquele que se notabiliza por atirar diretamente no coração. Por isso, não falta matéria-prima para abastecer programas televisivos que predominam no horário vespertino, exibindo o que o ser humano pode produzir de mais bárbaro.

Referência

Tal situação leva a uma entre duas alternativas possíveis: rezar para não se tornar a próxima vítima ou buscar inspiração em políticas públicas de localidades que lograram êxito ao virar o jogo contra a alta criminalidade. Neste caso, Nova Iorque desponta como referência obrigatória. A taxa de crimes violentos caiu de forma contínua a partir de meados dos anos 90 e hoje se encontra em nível 80% mais baixo que há duas décadas. O mesmo fenômeno marcado por redução vertiginosa ocorreu praticamente em relação a todas as demais ocorrências comuns ao dia a dia de qualquer delegacia de polícia, entre os quais lesões corporais, arrombamentos, roubos e furtos de veículos, entre outros. Em 2014, Nova Iorque registrou 328 homicídios para população de 8,5 milhões de habitantes que compõe a região metropolitana. Trata-se do menor número desde 1963 e que redunda em uma taxa de quatro homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Em 1987, durante o pico da epidemia de venda de drogas, foram registrados 1.672 homicídios na mesma região.

A taxa nova-iorquina de quatro homicídios por 100 mil habitantes representa um sonho para grandes cidades e metrópoles cronicamente violentas ao redor do planeta. Das 50 cidades com a maior taxa de homicídios em todo o mundo, nada menos que 21 estão no Brasil (confira na reportagem complementar).

Tolerância Zero

Como Nova Iorque conseguiu obter a menor taxa de mortes violentas e intencionais dos últimos 60 anos, a ponto de atingir padrão digno de nações europeias onde é possível caminhar despreocupadamente em grandes centros urbanos durante a madrugada? Como conseguiu, a partir de uma situação complicada, sobretudo pelo recrudescimento do tráfico de drogas, alcançar a invejável posição de região mais segura dos EUA e entre as 10 grandes cidades mais seguras do mundo, de acordo com levantamento realizado recentemente pela revista The Economist? A resposta está no programa Tolerância Zero colocado em marcha em 1994, pelo então prefeito recém-eleito Rudolph Giuliani.

Logo no início de seu mandato, Giuliani envolveu a polícia local em estratégia agressiva de combate à criminalidade, baseada no conceito Broken Windows Theory (Teoria das Janelas Quebradas). De acordo com este conceito, a tolerância a violações menores, como uma simples janela quebrada em função de um caso isolado de vandalismo, por exemplo, cria ambiente permissivo que favorece a repetição de transgressões cada vez mais graves, causando a degeneração da qualidade de vida e do patrimônio público.

Baseadas nesta abordagem comportamental, autoridades passaram a reprimir de forma vigorosa transgressões até então tidas como leves, entre as quais pichações, barulho excessivo, consumo de álcool e drogas nas ruas e prostituição. Na prática, essa repressão se deu pela intensificação da presença da polícia na vizinhança, com suporte de sistema de informação chamado CompSat. Inovador para a época, o CompSat passou a proporcionar o mapeamento geográfico dos crimes, viabilizando o deslocamento das forças policiais de acordo com a demanda mensurada por estatísticas.“Passamos a realizar em New York City o policiamento comunitário, um modelo muito diferente do que vínhamos fazendo em todos os Estados Unidos, durante as décadas de 60 e 70. O modelo anterior enfatizava o atendimento rápido às chamadas de emergência pelo número 911, além das investigações reativas, isto é, estabelecidas após a ocorrência dos fatos. O policiamento comunitário atua na raiz dos problemas ao enfatizar o patrulhamento preventivo e a presença dos agentes nas ruas, por meio de parceria com os moradores”, explica William Bratton, internacionalmente conhecido por ter sido o responsável pela implantação do programa Tolerância Zero, na condição de chefe-geral do New York Police Department – NYPD -, Departamento de Polícia de Nova Iorque, em 1994.

Na ocasião, Bratton foi trazido pelo então prefeito Rudolph Giuliani com missão expressa de fazer a diferença nas estatísticas criminais de Nova Iorque. O enfrentamento da criminalidade rampante configurou uma das principais propostas de Rudy Giuliani, durante a campanha eleitoral. Àquela altura, ele consolidara credencial respeitável como promotor público implacável no combate ao crime organizado. Bratton, por sua vez, acumulara experiência de 25 anos como oficial de polícia em outras regiões dos Estados Unidos, antes de encarar o maior desafio de sua carreira profissional.

Bratton narra a experiência de 27 meses à frente do NYPD, entre 1994 e 1996, no livro Turnaround – How America s Top Cop Reversed the Crime Epidemic (“Volta por Cima” – Como o Principal Policial dos Estados Unidos conseguiu Reverter a Epidemia da Criminalidade). Entre tais experiências figura o desenvolvimento pioneiro com suporte da equipe sob seu comando do sistema CompSat, que, dado ao sucesso alcançado na região de origem, passou a ser adotado em várias partes dos Estados Unidos, além de exportado.

Mais recentemente, em dezembro de 2013, Bratton foi convidado pelo então prefeito recém-eleito, Bill de Blasio, a assumir pela segunda vez o comando da mais prestigiada academia de polícia do planeta. Foi chamado, obviamente, em função dos serviços prestados duas décadas atrás. Desde então, Bratton, com 68 anos, está no comando da corporação que conta com efetivo de 35 mil policiais nas ruas, sem contar funcionários administrativos. Antes de assumir o NYPD pela segunda vez, ele empreendeu trabalho, igualmente reconhecido, como comandante da polícia de Los Angeles.

Giuliani foi prefeito de Nova Iorque entre janeiro de 1994 e dezembro de 2001. Depois dele vieram Michael Bloomberg (2002 a 2013) e Bill de Blasio, em ofício desde janeiro de 2014. Isso significa que o programa Tolerância Zero se consolidou e manteve-se ao largo, independente da descontinuidade em políticas públicas que caracteriza o ambiente pouco afeito à meritocracia, no Brasil.

Mudança de paradigma

Entre as muitas lições de Bratton, em ‘Turnaround’, uma das mais valiosas é a constatação de que, em grande medida, a qualidade do ambiente determina o quilate das ações humanas. A manutenção da ordem pública, portanto, resultaria do estabelecimento de pré-condições apropriadas por parte de executivos públicos com suporte de especialistas na área criminal. “Todo trabalho realizado em New York City naquela época partiu da constatação de que se você não abandonar a visão permissiva e passar a corrigir comportamentos inadequados, ao longo do tempo a situação tende inevitavelmente a piorar, levando a um círculo vicioso de deterioração urbana e social que acaba por colocar em xeque tanto a qualidade de vida da população, quanto a capacidade de atração de investimentos”.

Bratton mostra que o sucesso da estratégia de combate à criminalidade em Nova Iorque foi consequência de uma mudança de paradigma por parte do povo nortesem-titulo-americano. “A polícia dos Estados Unidos passou por mudança histórica de direção nos 25 anos que antecederam a adoção do ‘Tolerância Zero’. Essa mudança respondeu à alteração nas aspirações e expectativas da população em relação ao papel da polícia na sociedade. Nos anos 70 e 80, o papel da polícia norte-americana sempre foi reativo. O foco sempre foi responder aos chamados de emergência 911 e centrar esforços na investigação. Isso acontecia porque a sociedade acreditava que a criminalidade era consequência de fatores sociais e econômicos como a pobreza, o racismo, o desemprego, etc. Como a polícia não pode fazer nada para atenuar esses fatores e os crimes são resultado deles, esperava-se que a polícia se concentrasse apenas em dar respostas quando fosse acionada. Imaginava-se que, desta forma, a criminalidade poderia ser controlada ou até reduzida. Infelizmente, essa era a direção errada e os resultados se tornaram evidentes particularmente a partir do início dos anos 90, com a explosão do consumo e tráfico drogas, notadamente crack e cocaína. A violência cresceu de forma exponencial e ficou claro que a polícia norte-americana não estava preparada para lidar com este tipo de problema”.

Prossegue Bratton: “Em realidade, nos anos 70 houve a “despolicialização” das ruas nos Estados Unidos. Achávamos que apenas reagir aos chamados emergenciais seria o suficiente para manter o controle. Que enviar viaturas após o ocorrido e investir em investigação dariam conta de mostrar que estávamos fazendo a nossa parte. Mas, o volume de chamadas 911 só fazia aumentar, o que comprova que a situação, em vez de melhorar, na verdade estava piorando”, observa. “Por isso, o cerne do ‘Tolerância Zero’, que é colocar a polícia na vizinhança e abafar o surgimento dos pequenos delitos, representa de certa maneira o retorno ao paradigma que foi abandonado nos anos 70, por conta de uma visão equivocada quanto às origens da criminalidade. A mudança se tornou possível porque, a partir de meados dos anos 80, a mídia, políticos, acadêmicos, especialistas em segurança pública e a sociedade como um todo perceberam que a forma como lidávamos com os crimes era totalmente inadequada e que algo diferente precisava ser feito a respeito”, expõe.

Para os que acreditam que a criminalidade é determinada por problemas sociais, Bratton oferece instigante raciocínio oposto. “O crime não é necessariamente causado por problemas sociais. Pelo contrário, o crime é a causa de problemas sociais. Numa localidade onde o crime campeia, os negócios fogem, a economia piora, os empregos desaparecem. As pessoas passam a não ter dinheiro suficiente, as famílias se desagregam. O crime é o câncer que causa os problemas sociais”, considera.

O ponto principal do livro Turnaround, de acordo com Bratton, é a defesa da possibilidade de retomar espaços públicos que tenham sido ocupados de forma inapropriada. “É possível conferir poder à polícia para que retome o que ficou perdido no passado”, pontua. “Existe um velho adágio, segundo o qual “If you can make it in New York you can make it anywhere” (Se você consegue fazer em Nova Iorque você consegue fazer em qualquer lugar)”, recomenda Bratton.

Cabe aos prefeitos brasileiros, no nível local, se cercar de especialistas e garantir condições políticas para que esse trecho da canção entoada por Frank Sinatra se torne realidade.

 Guerra à impunidade

Em bom português, a tradução dos ensinamentos de Bratton representa ataque frontal a um mal muito familiar aos brasileiros: impunidade. Quando existe grande possibilidade de punição, a ocorrência de crimes fica circunscrita ao desvio padrão que caracteriza a natureza humana inerentemente imperfeita e tendente a desvios, independentemente do nível de renda ou da classe social. Quando, por outro lado, a falta de punição se torna praticamente uma garantia, o convite a ultrapassar a fronteira do direito de terceiros é constantemente renovado e reforçado ao sabor da tolerância da sociedade. Por isso, se quiserem seguir a trajetória exitosa de NY, policy makers (fazedores de políticas públicas) como prefeitos, governadores, presidente, ministros e legisladores dos três níveis federativos terão necessariamente de unir esforços para combater esse inimigo comum. Tal operação de guerra passa pela adoção – e efetivo cumprimento – de leis mais rígidas, capazes de alterar o caótico cenário vigente, com indultos, sistemas de redução e amenização de pena e outras concessões do gênero. Só assim é possível trocar a senha da impunidade pela mensagem redentora de que o crime não compensa. A mesma que mudou a face de New York City, nas últimas décadas.

Entre os mais violentos do mundo

O Brasil tem 21 das 50 cidades mais violentas do mundo, das quais 41 estão na América Latina. O ranking elaborado pelo Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal leva em conta apenas municípios com mais de 300 mil habitantes e exclui regiões conflagradas por conflitos bélicos abertos, como Síria e Iraque, no Oriente Médio. Os dados compilados pela organização não-governamental mexicana são de 2015.

Caracas, capital da Venezuela, lidera o ranking com taxa de 119,87 homicídios intencionais para cada 100 mil habitantes. San Pedro Sula, em Honduras, é a segunda colocada, com taxa de 111,03, seguida por San Salvador, capital de El Salvador, com 108,54. Acapulco, no México, com 104,73, e Maturin, na Venezuela, com 86,45, completam o pódio indesejável. Entre as cidades brasileiras a que apresenta a maior taxa é Fortaleza, capital do Ceará, que aparece em 12º lugar com 60,77 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Entre as 50 são 21 cidades no Brasil, oito na Venezuela, cinco no México, quatro nos Estados Unidos, quatro na África do Sul, três na Colômbia, duas em Honduras, além de uma em El Salvador, Guatemala e Jamaica.

Quem acompanha a evolução do ranking anual preparado pelo Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal percebe que a situação brasileira é cada vez mais desfavorável. Em 2011 o Brasil tinha 14 cidades entre as 50. O número subiu para 15, em 2012; 16,  em 2013; 19, em 2014 e chegou a 21, em 2015. Tal evolução converge com indicadores que dão conta da piora da taxa de homicídios, que passou de 11 por 100 mil habitantes, em 1980, para 22, em 2002 e 32,4 atualmente.

Enquanto a América Latina ocupa a lanterna do que poderia ser chamado de Campeonato Mundial do Nível Civilizatório, o troféu é disputado pelos continentes europeu e asiático, que nem aparecem na listagem das 50 mais perigosas. No ranking das 10 Cidades mais Seguras do Mundo (Safest Cities in The World), compilado pela The Economist Intelligence Unit (unidade de Inteligência da revista britânica) Tóquio (Japão) lidera, seguida por Cingapura, Coréia do Sul, Osaka (Japão), Estocolmo (Suécia), Amsterdã (Holanda), Sidney (Austrália), Zurique (Suiça), Toronto (Canadá), Melborne (Austrália) e Nova Iorque (Estados Unidos), a única representante das Américas, graças ao ‘Tolerância Zero’.

A unidade de inteligência da revista The Economist leva em conta a análise de 40 fatores qualitativos e quantitativos para elaboração do chamado Índice Geral de Segurança. Tais fatores estão relacionados a quatro áreas: segurança de dados, segurança de saúde, segurança  de infraestrutura e segurança pessoal – o qual leva em consideração a taxa de homicídios.

Outro indicador global que acende o farol vermelho para o Brasil é o “Relatório Sobre a Situação Mundial da Prevenção à Violência”, o mais abrangente levantamento já feito pela Organização Mundial de Saúde – OMS vinculada à ONU – Organização das Nações Unidas: o Brasil é o País com o maior número absoluto de homicídios do mundo, além de ostentar a 11ª maior taxa, levando em conta 194 países. O estudo aponta que a taxa brasileira de 32,4 assassinatos por 100 mil, em 2012, representa quase cinco vezes a média mundial (6,7) e nove vezes a média do grupo de países ricos (3,8).